A figura da cunhã e seu relacionamento com o empoderamento feminino | Parintins | A Crítica | Amazônia - Amazonas - Manaus
Um futuro consciente
A força através da beleza foi um dos atributos que fizeram a estudante de administração Maria Letícia, 17, querer ser cunhã-poranga do boi Caprichoso. “A expressividade deve ser uma característica muito marcante, a firmeza nos passos, no olhar. Essas coisas me chamam atenção, pois transpassam à mulher poder no seu próprio ser. Um olhar marcante já denota a força”, comenta ela.
No município de Parintins é bem comum as meninas sonharem em ser item e com Maria não foi diferente. “Eu assistia às apresentações pela TV quando pequena e achava aquilo fantástico! E para mim só existia a cunhã-poranga, mesmo que naquela época eu não distinguisse muito bem os bois. Mas foi em 2007, quando a Maria Azêdo passou a ser a cunhã do Caprichoso e eu fiquei encantada com ela, virei muito fã. E foi ali que a vontade aflorou”, relembra.
Letícia se considera empoderada de uma forma muito natural. E disse que isso se entrelaça entre o sentido de ser cunhã e ser dona de si. “Eu fui criada assim, meus pais sempre passaram à mim que eu poderia chegar à qualquer lugar por meus méritos. Que eu sou capaz, que basta eu me empenhar. Sei que existem barreiras e que nós, mulheres, muitas vezes temos nossa capacidade questionada, mas eu procuro ser nos mínimos detalhes do dia-a-dia altruísta e muito positiva comigo mesma e isso me dá a energia que preciso para de fato persistir no que quer que seja”, coloca.
Por volta dos oito anos de idade a estudante Júlia Santos, 17, já entendia quem era quem no boi, e curiosamente os itens pajé e cunhã-poranga foram os que mais lhe chamaram atenção. “Pensei ‘eu quero representar essa guerreira’. É isso que acho mais legal, esse ‘ser a guerreira mais linda da tribo’. Mais pela parte da guerreira do que da a mais linda da tribo. Mas toda vez que vejo uma cunhã entrando pela galera, entrando com as tribos fico pasma prestando atenção”, declara a jovem.
Assim como a imagem da cunhã-poranga, que retrata a figura da mulher em um cenário de guerra, Júlia também rompe barreiras: é uma das poucas mulheres a tocarem surdo, o instrumento de percussão mais pesado dentre os outros naipes, na Batucada do Garantido. “E no meu instrumento houve uma época que só havia eu de mulher, mas sempre fui tratada com carinho e respeito por todos”, comenta ela.
O fato da cunhã-poranga representar essa guerreira forte, com espírito de liderança, é o que mais fascina Júlia quanto ao item. “Para mim uma cunhã é uma mulher forte, mas que também é carismática”, conta ela, acrescentando que não sobra espaço para desigualdades. “Eu procuro sempre igualar as coisas, se vejo que tem alguém diminuindo o outro, me meto sim para defender, tanto mulheres quanto homens. Acho que todos são iguais com os mesmos direitos e deveres”.
Belas guerreiras da arena e da mitologia
Muito se compara a imagem da cunhã-poranga com as mitológicas guerreiras amazonas, mulheres indígenas que caçavam e lutavam, sem depender dos homens para isso. No mito amazônico, as amazonas escolhidas para chefiar suas tribos eram as mulheres mais fortes e, curiosamente, as mais belas. Para os povos ameríndios, existem apenas três fases: a criança, o adulto e o ancião. Nessa perspectiva, a Cunhã é a mulher e poranga é adjetivo de bonita. Mas, bonita no entendimento ameríndio não se refere apenas ao exterior, ao corpo, segundo a socióloga Márcia Oliveira, Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia.
“É uma totalidade. Bonita é a mulher que luta com garra, defende seu povo. Eis aí uma relação estreita com a ideia de Amazonas, as guerreiras que defendem seu povo, seu território. A beleza está muito mais relacionada ao papel das mulheres na sociedade ameríndia que na sua beleza apenas física. Aliás, a beleza física é algo muito relativo no entendimento ameríndio”, comenta ela.
Nesse sentido, a cunhã-poranga e as guerreiras amazonas se confluem. “São mulheres que colocam seu corpo na arte da guerra. Cuida-se do corpo não para exibí-lo aos demais, mas, para vencer na guerra. O corpo nesse sentido não é um objeto de prazer por ser dotado de beleza física. O corpo é instrumento de luta. Nesse corpo mora uma mulher capaz de lutar e defender seu povo, seu território, sua arte, sua dança (no caso dos bumbás) utilizando-se do seu corpo e dos seus atributos físicos para esta finalidade”, destaca.
Segundo Márcia, mulher e corpo são simbioses. Por conta disso, a beleza também está presente no contexto da luta por si mesmo. “Não existe uma parte do corpo mais ou menos importante. O corpo é uma totalidade. A performance dos cabelos, o gingado da cintura e a agilidade do compasso dos pés têm o mesmo grau de importância. Com seu corpo, sua garra, arte, competência e coragem a cunhã-poranga defende seu ‘boi’ na mesma proporção que a Amazonas defenderia seu povo e seu território.
A socióloga crê que os critérios que definem a cunhã-poranga vão muito além da beleza física. “Ela contagia com sua graça e doçura, mas, ao mesmo tempo, esbanja técnica, garra, força e coragem em defesa do seu boi com todas as suas capacidades físicas e intelectuais. Não é apenas a beleza física que conta. É o conjunto. É a totalidade conforme o entendimento ameríndio que não separa o corpo da alma, do intelecto, do encanto, da estratégia, da perspicácia que passa também pelo corpo, mas, não somente por ele.
Para Oliveira, manter-se com destaque na festa assume uma dimensão política, mesmo que a festa não tenha esse objetivo. “Entretanto, o lugar da mulher sem a dependência com a figura dos homens, numa relação de protagonismo, representa empoderamento político dessas ‘mulheres bonitas’ que são belas por seu esforço, técnica, coragem, e, acima de tudo, por sua capacidade de encantar e arrastar multidões para seu boi preferido”, completa.
Origem do nome
Até 1988, a cunhã-poranga não existia nos bois. Quem dava espaço ao item era a Miss do Boi. A professora aposentada Odineia Andrade, madrinha do Caprichoso, foi quem instituiu o termo “cunhã-poranga” para substituir a Miss do Boi. “Nós tínhamos esse termo americanizado que precisava ser substituído. ‘Miss’ não era um termo amazonense. Certo dia, estávamos reunidos com o pessoal que prepara o script do boi e nós achamos que era necessário trocar o termo. Ganhei um livro chamado ‘Kariwa’, e nele tinha o termo cunhã-poranga, que a colocava como uma bela mulher guerreira. Falei ‘vamos colocar um termo que represente as índias no boi-bumbá”, comenta ela.
Conforme Andrade, teve quem se mantivesse contrário à mudança, na época. “Nós tínhamos um amigo do contrário chamado Ruy Mendes. Ele não aceitou que fizéssemos a mudança, a não ser que provássemos que o termo era, de fato, indígena. Pegamos o livro ‘Kariwa’ e quando levamos para a reunião, todo mundo aceitou. A partir de 1989 nessa reunião, o termo foi substituído. Antes disso, as misses Amazonas era super disputadas pelos bois para serem as ‘Misses do Boi’”, comenta ela. Odineia se sente mais satisfeita com o termo cunhã-poranga porque este melhor representa o contexto tribal.
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